José Velloso*
A transição energética, que visa a transformação do nosso modelo de produção e consumo para bases sustentáveis, tem se mostrado cada vez mais essencial na construção de uma economia de baixo carbono. Esse processo não se limita à substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis: a transição econômica para bases verdes deve ser inclusiva e justa, de forma que os benefícios de novas oportunidades de industrialização se traduzam em compromissos com demandas ambientais e garantam justiça social.
A Geração Distribuída (GD) – termo que se refere à energia elétrica gerada no local de consumo ou próximo a ele – tem se mostrado uma solução vantajosa para muitos consumidores, pois permite a redução das contas de luz ao gerar energia de forma independente da rede elétrica. No entanto, seu modelo de adoção enfrenta um grande desafio no Brasil: o acesso desigual entre as classes sociais. Como a instalação de sistemas fotovoltaicos exige um investimento inicial considerável, a maioria da população de baixa renda, que não tem condições financeiras para arcar com esse custo, fica de fora dos benefícios (subsídios) da GD. Isso cria uma disparidade no acesso à energia limpa e renovável, uma vez que os consumidores de classe média e alta se beneficiam dos subsídios, enquanto os mais pobres continuam dependendo do sistema elétrico tradicional, com tarifas elevadas, pagando subsídios para os beneficiados, o que agrava ainda mais a desigualdade no setor energético.
A forma como os incentivos fiscais e regulatórios estão estruturados para a geração distribuída acaba prejudicando os consumidores de menor renda. Esses usuários arcam com parte dos custos relacionados ao uso da rede elétrica pelos proprietários de sistemas de GD. Isso resulta em tarifas mais altas para a maioria da população, o que agrava ainda mais a desigualdade no setor. De acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), os subsídios à GD atingiram R$2,8 bilhões em 2022 e chegaram a R$7,1 bilhões em 2023. Para 2024, o valor já soma R$9,6 bilhões até outubro. Esses subsídios beneficiam no máximo 3% dos consumidores, em sua maioria de classes sociais mais altas, o que configura uma distorção no sistema. Em outras palavras, o atual modelo pode ser considerado como um “Robin Hood às avessas”: os mais pobres, que continuam dependendo do sistema elétrico tradicional, acabam financiando os mais ricos, que usufruem dos benefícios da geração distribuída.
Outro ponto crítico relacionado à GD é o impacto sobre a estabilidade do sistema elétrico brasileiro. Com o aumento desproporcional do número de instalações fotovoltaicas, a tarefa do Operador Nacional do Sistema (ONS) se torna mais complexa. Isso ocorre porque a energia gerada pelos sistemas solares não pode ser utilizada durante a noite, o que exige o uso de mais potência reativa para manter a estabilidade das redes elétricas, um processo que além de caro, se torna cada vez mais desafiador. O problema da intermitência da energia solar em determinados períodos ainda tem como ônus a possibilidade de serem adotadas alternativas como o recurso à energia gerada por termelétricas, obtida pela queima de combustíveis fósseis – não renováveis – e que, portanto, tem maior impacto nas emissões de CO2.
Diante disso, a modernização do setor elétrico brasileiro passa pela abertura do mercado de energia, o que permitiria a todos os consumidores, independentemente de sua classe social, o acesso a um mercado mais justo e competitivo, como ocorre em países mais desenvolvidos, como o Reino Unido, a Alemanha, a França e a Austrália. Enquanto o modelo regulatório carece de aperfeiçoamento para mitigar os impactos da GD, é necessária a adoção de medidas paliativas para colocar a indústria nacional em um patamar de igualdade frente à concorrência desleal de importados no mercado de energia solar até que ações efetivas de combate a fatores estruturais que impactam negativamente a competitividade no país sejam concretizadas.
Nesse contexto, a recente decisão do Comitê Executivo de Gestão (Gecex) da Câmara de Comércio Exterior (Camex) de aumentar a tarifa de importação de células fotovoltaicas, utilizadas em módulos e painéis solares, é uma ação importante e acertada. O Brasil, ao importar esses equipamentos, tem subsidiado indiretamente o mercado internacional, especialmente os produtores que recebem grandes incentivos do governo de seus países, que exportam os equipamentos para o Brasil.
Nos últimos três anos, o Brasil deixou de arrecadar uma quantia significativa em impostos devido a uma tarifa de importação reduzida, o que contribui para um sistema regulatório desconectado da ideia de uma transição justa e inclusiva.
Essa medida também se alinha aos objetivos da política industrial do Brasil, a Nova Industrial Brasil (NIB), que busca fortalecer as cadeias produtivas internas, criando mais empregos qualificados e oportunidades no país. Aliada a políticas públicas que ampliem o acesso à energia elétrica renovável para famílias de baixa renda, tende a equilibrar desigualdades inerentes à GD. Abre mais espaço para outras formas de energia sustentável, como a eólica, que vai dar maior equilíbrio na soma das fontes de energia.
Ao aumentar a tarifa de importação, o governo sinaliza a intenção de diminuir a dependência de produtos estrangeiros e, ao mesmo tempo, enfrenta um dos problemas mais graves do sistema atual: a concorrência desleal, onde os grandes produtores internacionais inundam o mercado brasileiro com produtos subsidiados, prejudicando os fabricantes locais e as perspectivas de uma indústria nacional de energia renovável.
No entanto, a medida ainda apresenta limitações. Para que seja ainda mais eficaz, seria necessário um aumento mais substancial na alíquota de importação, alcançando pelo menos o teto de 35%, conforme estabelecido pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Vale destacar que países como os Estados Unidos já estão adotando medidas unilaterais que ultrapassam esses limites, justamente para proteger suas indústrias locais e combater práticas anticoncorrenciais de subsídios externos.
Assim, a decisão do Gecex deve ser vista como um passo positivo não apenas para fortalecer a indústria nacional, mas também como uma tentativa de corrigir as distorções de um sistema de incentivos que prejudica os consumidores mais vulneráveis e compromete uma transição energética mais justa e inclusiva para o Brasil. A medida, portanto, é um avanço, mas também um lembrete de que ainda há muito a ser feito para garantir que a transição energética no Brasil beneficie toda a sociedade de maneira equitativa.
**José Velloso é engenheiro mecânico, administrador de empresas e presidente executivo da ABIMAQ / SINDIMAQ.