Sidnei Canhedo*
O título tem um tom de ironia mas é por uma causa nobre. Não podemos mais aceitar ter acidentes causados por fadiga ou sono em nossas ruas e estradas. Tragédias não podem mais acontecer, nem fazer parte da relação entre veículo e condutor. Há conhecimento e tecnologia para banirmos esses tristes episódios, causados, na maioria das vezes, por imprudência quase cultural. E isso precisa acabar.
Antes de apontar soluções que previnam efetivamente acidentes dessa natureza, é preciso mostrar que o problema é complexo e é global. Nos Estados Unidos, por exemplo, de acordo com recentes estudos da agência governamental NHTSA – The National Highway Traffic Safety Administration – mais de 1500 pessoas morrem todos os anos gerando também perdas financeiras da ordem estimada em R$ 62 bilhões anualmente.
Já quando a zona geográfica são as estradas brasileiras, de acordo com um estudo da ONU, realizado antes da pandemia, as mortes causadas por cansaço nos posicionam como o 5o país onde as pessoas mais morrem no trânsito, atrás de Índia, China, EUA e Rússia. Segundo o Ministério da Saúde, em 2019 tivemos a impressionante marca de 32 mil vítimas fatais, o equivalente a 87 mortes por dia.
Outro estudo, desta vez realizado pela pela Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET) em parceria com a Academia Brasileira de Neurologia e com o Conselho Regional de Medicina, aponta que 42% dos acidentes estão relacionados ao sono e 18% por fadiga. Somados, impressionantes 62% do drama que vivenciamos nas pistas brasileiras poderiam ser evitados, se adotássemos a prevenção como bandeira veicular.
É preciso entender as causas, preveni-las e mitigá-las com absoluta seriedade. São inúmeros os motivos que podem causar a fadiga, desde questões emocionais que se transformam em quadros de estresse, ansiedade ou depressão, ou até outros fatores patológicos como a síndrome da fadiga crônica, anemia, câncer, insuficiência hepática e muitas outras doenças. Há ainda questões que envolvem o uso excessivo de álcool, drogas, abuso em atividades físicas, alimentação pouco saudável e o uso indiscriminado de certos medicamentos como anti-histamínicos e antidepressivos.
Todos esses são pontos que se referem às condições físicas e psicológicas que devem sempre ser acompanhadas por check up frequentes e por médicos. Aliás, entra aí a responsabilidade do empresariado, do Uber, até donos de transportadoras. Motoristas precisam contar com assistência continua e com acompanhamento profissional e jamais, serem forçados ou incentivados a elevadas cargas horárias, algo que, infelizmente, é uma prática corriqueira no Brasil, principalmente entre os motoristas de caminhões.
Outro ponto que temos que assumir como responsabilidade, seja entre os que trabalham profissionalmente atrás do volante, ou quem conduz apenas esporadicamente. Dormir bem é preciso ser encarado como algo compulsório, igualmente o ‘se beber não dirija’. Estudos em todo o mundo demonstram que é necessário que adultos durmam entre sete e nove horas por dia. Dormir menos e conduzir é um catalisador de uma possível tragédia.
Prevenir é essencial, mas as vezes o sono ou cansaço aparecem de forma inerente. Entra a fase quando precisamos identificar os sinais e, mais uma vez, assumirmos o manto da responsabilidade. Todos que citarei aqui são claros, e, provavelmente, já ocorreram com cada um de nós, flertando com um risco e muito perigo. São eles:
Bocejo frequente, vontade de cochilar, olhos cansados, ou aumento do piscar de olhos, pequenas desviadas de faixa, passadas sobre “tiras de ruído” na estrada, incapacidade de lembrar os últimos quilômetros, seguir carros muito de perto e a dificuldade em manter a velocidade adequada. Se um desses ocorrer, não há porque insistir. Pare em um local seguro e descanse, ou passe a direção para outra pessoa.
Além da percepção clara desses sinais, há a tecnologia no formato de sensor integrado ao veículo que avisa ao motorista com um sinal no painel, sobre qualquer indicação de fadiga. Trata-se de anjo da guarda privativo, esse sim, que passará a vir de fábrica, mas, por hora, apenas nos novos veículos europeus.
O Velho Continente está impondo esse ano, a obrigatoriedade de todas as montadoras entregarem vans, carros, ônibus e caminhões com um sensor que detecta fadiga ou distrações dos motoristas. O equipamento faz parte de um pacote chamado de New Safety Features in your Car (Novas Configurações de Seguranças no seu Carro). De acordo com o Bloco Europeu, 90% dos acidentes são causados por erros humanos e as novas tecnologias são essenciais para mitigar esse desafio.
Há ainda sistemas mais sofisticados, com óculos repletos de sensores que são usados, por exemplo, em caminhões fora-de-estrada em mineradoras, e que estão integrados a um complexo software que não só avisa os motoristas, como gera alertas preventivos a uma sala de controle e monitoramento de segurança que será avisada antes de um possível cochilo acontecer. Trata-se do que há de mais seguro na relação entre sono e volante.
Ao fazer uma análise superficial, pode parecer utopia banir acidentes por excesso de fadiga no mundo. Mas não é! Já temos equipamentos sofisticados e conhecimento profundo das causas, dos sintomas e da forma de prevenir a associação entre direção e um corpo que precisa descansar.
É preciso direcionamento dos Estados, como tem feito a União Européia, com normas, campanhas e mobilização social para mudar uma cultura, quebrar um paradigma. Quem hoje colocaria uma criança de três anos no banco da frente, sem cinto de segurança e circularia pela cidade ou pegaria uma estrada? Além de delito é considerado pela sociedade como uma insanidade cruel.
A sociedade entende que conduzir cansado é algo irresponsável. Mas é preciso que todos compreendam que a fadiga, em algum momento, atingirá a todos, e quando chegar a nossa vez, se for entrar em veículo, que seja apenas como um passageiro, orgulhoso por estar exercendo sua cidadania.
* Mestre em Saúde Ambiental e Gestor da Optalert, empresa australiana, líder mundial na tecnologia de controle de fadigas. scanhedo@optalert.com