É preciso resgatar o espírito reflexivo no novo ambiente de dados para a Comunicação 

É preciso resgatar o espírito reflexivo no novo ambiente de dados para a Comunicação 

(*) Clóvis Teixeira Filho

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) levou organizações a mudarem seus processos de captura e análise para gerar informações sobre clientes. Provocou também a discussão sobre contratos digitais, valor dos dados pessoais e modelos de negócios. O que já era sentido na solicitação do CPF na farmácia, nos direcionamentos de ofertas em aplicativos, ou nos critérios para o fornecimento de crédito, foi divulgado por mais uma iniciativa necessária no Brasil. Proposta alinhada a outras incursões internacionais sobre o tema.   

Cabe refletir, no entanto, além dos limites da regulação, para compreender o desafio que a digitalização da vida traz para os sujeitos no exercício da cidadania. Nesse sentido, a Comunicação tem papel fundamental para suportar cidadãos conscientes e competentes para exigir limites e atribuírem responsabilidades em tempos de nuvens e avatares.  

O que parece mais evidente no mundo dos negócios, envolvendo a publicidade digital, mostra-se igualmente presente no Jornalismo. Enquanto a Publicidade fortalece bolhas de consumo, com segmentações sofisticadas e rastreabilidade dos caminhos de compra, também amplia a diversidade em suas representações e discute pautas sociais.  Já na imprensa análises de dados públicos exigindo transparência, bem como a apresentação de reportagens interativas, têm sido recorrentes. Por outro lado, as chamadas fake news continuam a circular, apoiadas por grandes verbas e estruturas. Jornalistas de dados intensificam a checagem de fatos na tentativa de combater abusos e traduzir o cotidiano em linguagens do novo tempo. Assim, vemos neste ambiente possibilidades positivas e negativas que reforçam a importância de ampliar a discussão.   

A formação de competências comunicacionais, de um saber orientado ao ambiente de dados digitais e suas mídias, fornece potência não apenas para os profissionais da área, mas principalmente para defesa de direitos e deveres de todo cidadão. Essa literacia midiática tem sido proposta na inclusão do tema, desde o fundamento educacional, na Base Nacional Comum Curricular. A Comunicação e a Cultura Digital são competências gerais da Educação Básica, que se desdobram em questões específicas na área de linguagens e tecnologias. Um grande passo, com certeza, e que deve ser aplicado nacionalmente.  

Propostas interessantes também partem de pesquisadores nesse sentido. O antropólogo Néstor Garcia Canclini defende que o consumo cidadão só será possível ao englobar o acesso à diversidade de produtos e maior representatividade, reflexões a partir de informações confiáveis que possam refutar a sedução publicitária, e a participação da sociedade civil nas decisões sobre consumo. Já Evgeny Morozov questiona a concentração de dados em grandes organizações dos EUA e China, clamando por iniciativas regionais e vigilância das práticas corporativas. Yuval Harari fala em dataísmo como uma religião em que a crença no fluxo de dados e algoritmos supera o crédito nas decisões humanas. E o filósofo Byung Chul-Han defende a retomada do humano, em um existencialismo atualizado, que brada por transparência na atuação digital e ponderação das práticas cotidianas.   

Parece claro o papel da Comunicação na formação cidadã e na constituição de competências condizentes com a sociedade atual. Dessa forma, poderemos resgatar a condição humana de análise e crítica, questionando como os avanços tecnológicos podem prosseguir sem limitar as perspectivas de segurança pessoal e o convívio social. Já superamos o estágio em que desbravar o mundo digital era uma escolha. Agora, precisamos não apenas possuir competências midiáticas como resgatar o espírito reflexivo como prática diária. Caso contrário, assistiremos a filmes repetidos de regulações que ocorrem após longos períodos de uso indiscriminado de dados.   

(*) Clóvis Teixeira Filho é doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e coordenador de Pós-Graduação na Área de Comunicação do Centro Universitário Internacional UNINTER