José Oswaldo Siqueira*
Conhecimento e desenvolvimento
Embora a Ciência lide com o desconhecido e com incertezas e tenha se tornado complexa e multifacetada, ela nos permite analisar o mundo e ver além do que os olhos podem enxergar. Através dela podemos fazer conjecturas sobre a realidade, facilitar tomada de decisões sobre o desenvolvimento e provocar mudanças na sociedade. A relação Ciência-sociedade representa um ciclo virtuoso que vem acontecendo desde os tempos remotos, com a descoberta e o uso do fogo e da agricultura, até os dias atuais.
Considerando a ampla dimensão da Ciência e uma visão bem simplificada de seu papel, pode-se considerar que ela tem duas vertentes básicas: uma, bem profunda e complexa, que diz respeito à nossa própria existência, a qual indaga como o Universo se formou e tornou-se o que é hoje, e como será amanhã; outra, mais utilitária, diz respeito à aplicação do Conhecimento para que possamos ter uma vida saudável e um futuro melhor. Para isso, a pesquisa e a Ciência deve beneficiar diretamente a sociedade e contribuir para o desenvolvimento econômico e social, sendo capaz de transformar continuamente nossas vidas e o mundo e m que vivemos. O papel da Ciência não é simples e envolve pelo menos quatro dimensões coexistentes e geralmente interdependentes: Social, melhorando a qualidade de vida e o bem-estar humano; Econômica, aumentando a produção e a competitividade dos negócios; Ambiental, conservando a natureza e contribuindo para a sustentabilidade do Planeta; Intelectual, contribuindo com novas ideias, tornando a Humanidade cada vez mais sabia.
Ao longo do tempo, o conhecimento científico aumentou e se tornou o mais importante fator de promoção do desenvolvimento e a maior riqueza do Homem. É um bem intangível, mas que pode ser manipulado e transferido. É um fator de valor relacional e essencial para a sobrevivência e desenvolvimento da Humanidade. É inesgotável, mas sofre intenso processo de obsolescência, necessitando ser renovado continuamente. Sua insuficiência ou falta amplia as contradições entre a riqueza e o desenvolvimento e gera um abismo intransponível ao desenvolvimento. Isto tem como consequência a exclusão tecnológica, que conduz a uma espiral de pobreza com elevada dependência econômica, evasão de recursos e nenhum desenvolvimento efetivo. Portanto, o Conhecimento deve ser uma escolha estratégica para o desenvolvimento de um país, de uma região, de uma comunidade, de um setor econômico e de qualquer empreendimento planejado.
O mundo vem passando por profundas ondas de transformação que aceleram o desenvolvimento, mas a cada onda surgem novos desafios que são de natureza cada vez mais complexa e de riscos elevados. O enfretamento desses desafios exige novos conhecimentos da mesma ordem de complexidade e profundidade e os riscos envolvidos são cada vez maiores. Neste cenário de complexidade e de riscos de naturezas diversas, a ignorância científica e a desinformação ocupam posição de destaque. Ao mesmo tempo que construímos uma sociedade dependente do Conhecimento, pouca gente é capaz de entender dados complexos e muito menos a Ciência, seus fundamentos e aplicação. Segundo o astrônomo Carl Sagan, isto é uma receita para o fracasso do desenvolvimento sustentável e o prenúncio de um desastre social. Pesquisadores e cientistas publicam cerca de 2,5 milhões de novos artigos por ano, volume que vem aumentando em taxas muito elevadas, mas esstas valiosas informações ficam confinadas à bolha acadêmica, tendo seu impacto no processo de desenvolvimento muito reduzido e distanciando a geração de Conhecimento e sua aplicação.
Vivemos ciclos ininterruptos de processos dinâmicos de desenvolvimento da Humanidade, materializados como uma sequência de revoluções de natureza e conteúdos diversos. Dentre as inúmeras invenções do Homem, destaco a agricultura, com seus impactos positivos e negativos; a descoberta de antibióticos e o surgimento das bactérias resistentes; a fixação industrial de nitrogênio atmosférico e a poluição dos rios. A agricultura é considerada a maior das grandes invenções, e para cumprir seu papel primordial de alimentar o mundo, terá de produzir nos próximos 50 anos o que produziu nos últimos 10 mil anos da sua existência; e ainda reduzir os impactos negativos que causa ao meio ambiente, enfrentar a escassez de recursos naturais e as mudanças do clima. Assim, o Conhecimento para o desenvolvimento é uma corrida interminável em direção a um futuro repleto de incertezas e cada vez mais complexo. Certamente, o que nos trouxe até aqui não nos levará aonde pretendemos chegar.
Revolução agrícola, a mais grandiosa invenção da história humana
A revolução agrícola, considerada a mais importante de todas, baseou-se no uso do conhecimento empírico dos habitantes do Período Neolítico e permitiu, ao longo da História, várias revoluções na vida humana. Como foi a primeira ocupação do Homem e abrange toda a Terra, é a base de todas as indústrias e do desenvolvimento tecnológico mundial. Como discutido por Yuval Harari, em seu livro Homo sapiens, a revolução agrícola surgiu em consequência da primeira das grandes revoluções, a cognitiva. A agricultura é considerada a maior invenção do homem, que o salvou da extinção pela ameaça da fome e o colocou no caminho da prosperidade e do progresso. É uma invenção tão única e grandiosa, que o processo de criação ainda não terminou; está em constante evolução e não pode parar. A revolução agrícola pressupunha uma vida mais fácil, mas a transição de coletores-caçadores para camponeses tornou, na verdade, a vida mais difícil e com maior risco, defende Harari. A essencialidade da agricultura para a existência da Humanidade é inquestionável quando se considera sua capacidade de alimentar, vestir e abrigar os habitantes do Planeta. Dos tempos de caçador-coletor aos dias atuais, a capacidade do Planeta de alimentar seus habitantes aumentou em 40 mil vezes, graças ao desenvolvimento e uso de tecnologias que vêm revolucionando continuamente os sistemas agroalimentares. O Brasil é o exemplo mais recente desta revolução. Nos últimos 40 anos, graças a políticas públicas, conhecimento específico e investimentos, o país tornou-se o gigante do agronegócio mundial. Cerca de 60% do crescimento do PIB do setor foi devido à adoção de novas tecnologias, processo que continua a nos desafiar, demandando novos conhecimentos e tecnologias disruptivas. Sem tecnologias adequadas não se consegue sustentabilidade e desenvolvimento dos territórios agrícolas. Theodore Schultz, prêmio Nobel de economia em 1979 por seus estudos sobre agricultura e desenvolvimento sugere que há que se abandonar a agricultura tradicional, porque esta não é eficiente, mas pobre e incapaz de criar valor para ser compartilhado. Por isso, temos de estar buscando sempre a modernização produtiva e sustentável. O Brasil não ficou com sua agricultura tradicional predatória e extrativista; ao contrário, fez grandes investimentos em capital humano e tecnologias e transformou radicalmente sua agricultura, que cresceu 3,6 vezes mais que a indústria, nas ultimas décadas. Ainda assim, o agro brasileiro tem sido objeto de questionamentos e controvérsias mundo afora. Embora a agricultura atual seja considerada avançada e sustentável, enfrenta grandes desafios, alimenta discussões e posicionamentos políticos acirrados, que merecem nosso mais profundo respeito e consideração de todos os lados. Para enfrentar esses desafios, precisamos de inteligência, ética e muita Ciência de qualidade. É importante ressaltar que os conflitos e as distorções que envolvem o agro atual surgem muitas vezes da falta de conhecimento fundamentado em ciência das partes conflitantes, deixando claro a necessidade de diálogo e comunicação para continuar nossa trajetória de crescimento e desenvolvimento cada vez mais sustentável e resiliente.
Como ocorre em todas as áreas, o avanço científico e tecnológico da agricultura é extremamente dinâmico e cada vez mais rápido. Esses avanços não podem ficar restritos à esfera acadêmica e da cadeia de insumos; precisa atingir de fato os maiores protagonistas da atividade, os produtores rurais, especialmente os pequenos produtores, geralmente pouco contemplados com o conhecimento e com os benefícios da Ciência moderna. O resultado deste cenário é um imenso contingente de pequenos produtores excluídos do desenvolvimento e que precisam ser orientados e assistidos. A ciência aplicada ao campo e que move o agro resulta da integração de várias áreas do Conhecimento, indo muito além da Agronomia, Zootecnia e da Engenharia Agrícola, em um processo que se expande e aprofunda a cada dia, incorporando novos conhecimentos de áreas antes nunca pensadas em contribuir com o avanço do campo. Isso tem resultado em profundas transformações na maneira de produzir e na qualidade e segurança dos produtos, em especial dos alimentos, assim como dos impactos negativos da produção agrícola. A cadeia de produção e a inovação do agro atuam de maneira integrada na junção de inúmeras atividades, como a produção de insumos, máquinas e equipamentos, sistemas de produção, agroindústria, mercado e setor de agrosserviços. Assim, apenas a abundância de recursos naturais não é suficiente para manter nossa competitividade global. Contamos com muita inteligência tecnológica e gerencial e inovações convencionais e disruptivas na cadeia agroalimentar. Nosso desenvolvimento ocorreu a partir da criação de competência técnico-científica e muita pesquisa pública local e atualmente contamos com forte protagonismo do setor privado em atividades de P&D e inovação.
No passado, as riquezas eram descobertas, como ocorreu historicamente com a mineração e a própria agricultura, o que só ocorria em terras férteis, naturalmente; mas atualmente as riquezas são criadas pelo conhecimento. Um exemplo é o cultivo do cerrado, que em seu estado natural era manejado com fogo e seus solos eram considerados não aptos para o cultivo, mas com o conhecimento se tornaram férteis e muito produtivos, criando riquezas e oportunidades e gerando uma verdadeira revolução no campo e na cidade. Podemos dizer que com o cultivo do cerrado reinventamos a agricultura tropical. Para se tornar o celeiro de alimentos do mundo, construímos a fertilidade do solo, adaptamos as culturas aos solos ácidos, desenvolvemos sistemas de manejo eficientes e agora entramos em nova fase de reconstrução do microbioma do solo do cerrado. Para esta nova etapa, adotamos conceitos multidisciplinares e tecnologias de vanguarda para uma nova era da agricultura do cerrado, que vai além da sustentabilidade e entra na era da Agricultura Regenerativa. Assim, fica evidente que os desafios continuam surgindo e exigindo cada vez mais produção de ciência de qualidade e comunicação eficaz para garantir as transformações necessárias dos sistemas agroalimentares. Precisamos estar atentos e nos conectar à visão de inovação, como fez Robert Taylor, que só inventou o sabão liquido depois de ver que as barras de sabão do banheiro se tornavam pastosas e gosmentas depois de alguns usos. Temos de manter viva a ideia de inovação, que é necessária no mundo competitivo em que vivemos. Aqui cabe um fato histórico de que a idade da pedra não acabou por falta de pedra, mas por necessidade de inovação. É necessário entender a relação entre a Ciência e a inovação: “a tecnologia surge da Ciência, mas sobrevive do mercado”, ou seja, de seus adotadores. Manter os agricultores bem informados e alinhados às necessidades de inovação é condição sine qua non para a existência de demandas de inovação no campo. Sem demandas efetivas, não há inovação, e o conhecimento gerado nas instituições de C&T fica restrito ao ambiente acadêmico e, portanto, sem valor social e econômico.
Para mantermos uma agricultura competitiva, sustentável e resiliente, precisamos de sistemas de produção cada vez menos impactantes ao meio ambiente, que usem menos recursos naturais (água, energia, insumos químicos e fosseis) e que sejam capazes de manter e até aumentar a produtividade. De modo generalizado, os gaps de produção se concentram em nutrição adequada das culturas (fertilizantes e manejo dos nutrientes), uso eficiente da água, controle de pragas, manutenção da integridade e saúde do solo e redução das emissões. A transformação dos sistemas vai requerer que pelo menos 75% dos gaps de produção sejam superados, e isso se faz com a adoção de tecnologias de vanguarda e sustentáveis. Para enfrentar essas mudanças, precisamos de abordagem analítica multidisciplinar e integradora dos cenários de riscos e oportunidades com ênfase na diversificação dos sistemas de produção e desenvolvimento de novos produtos e alimentos e novos padrões de produção; um novo mindset dos agricultores e consumidores para sistemas de produção sustentáveis e com novos padrões de aceitabilidade; ações para inclusão tecnológica de grandes produtores extensivistas às novas tecnologias e padrões sociais e ambientais de produção; expansão e consolidação da nova bioeconomia sustentável e economia circular; inclusão social e tecnológica de maneira competitiva, em novos nichos de mercado para pequenos produtores, atualmente com carência de informações, conhecimento e crédito.
Como estratégia para enfrentar os problemas advindos da necessidade de mudanças, temos de considerar vários aspectos, tais como: realizar uma avaliação de cenários e tendências em bases técnicas e ter um diagnóstico preciso, com foco nas oportunidades e fraquezas; avaliar a defasagem tecnológica e colocar foco nas necessidades imediatas de tecnologias, organização e gestão; seguir as tendências de mercado dos produtos e das ofertas de tecnologias demandadas; alinhar-se a um propósito e definir o planejamento estratégico com foco no futuro, na sustentabilidade e na competividade da atividade. Para se obter sucesso com os processos orientados pela Ciência, deve-se manter as ações centralizadas em dois princípios básicos: o conhecimento efetivo, que é aquele direcionado à solução de problemas e desafios já bem delineados, e a racionalidade científica, que trata de conhecimentos que possam impactar positivamente o sistema de produção e a sociedade.
A grande e generalizada preocupação com a sustentabilidade surge da necessidade de conter os impactos negativos da antropização do Planeta e do fato de que seus recursos naturais são finitos, mesmo aqueles renováveis, cuja pressão de uso não permite sua regeneração em tempo razoável, além das desigualdades econômicas e sociais. Conceitualmente, à primeira vista, a sustentabilidade expressa uma visão paradoxal entre produção e conservação, e em se tratando de agricultura, a sustentabilidade representa mais oportunidade do que risco, desde que atuemos em tempo e com competência para diminuir e reverter os impactos negativos da atividade, para assegurar a existência da atividade agrícola e dos negócios da cadeia do agro. Geralmente, quando se fala de impactos da agricultura, se refere aos impactos negativos ao meio ambiente e social. De fato, são bem evidentes e divulgados os impactos negativos, especialmente aqueles causados pela vasta extensão territorial da atividade e pelo uso intensivo de produtos químicos, que apontam para a percepção geral de baixa sustentabilidade do agro brasileiro. No entanto, mais recentemente, se discute os aspectos positivos e as oportunidades para o agro brasileiro no cenário de mitigação das mudanças do clima, da conservação da biodiversidade e dos impactos positivos da atividade agrária para a comunidade e economia do país. A visão generalizada dos impactos adversos da agricultura é responsável pela percepção pública negativa do setor e sua baixa reputação, que envolve vários aspectos, como a) desinteresse de boa parte do empresariado rural, que não se importa com esta questão e não se esforça para mudar; b) a proeminência da desinformação, no sentido de que o maior desafio não é entender a urgência das mudanças, mas repensar hábitos e formas de produção, para o qual o conhecimento é essencial. c) desigualdade social – a falta de acesso ao conhecimento, tecnologias e às políticas públicas deixa a maior parte dos agricultores fora do processo de desenvolvimento e cria sérias anomalias, que comprometem a sustentabilidade do setor agrícola.
A baixa reputação do agro brasileiro traz uma série de questionamentos sobre sua sustentabilidade e os riscos sociais e de mercado e aponta para a necessidade de melhorar a performance ambiental e de ampliação dos benefícios sociais. Para mudar esse cenário, precisamos melhorar a eficiência do uso dos recursos naturais, produzindo mais com menos, minimizar, mitigar e compensar os impactos negativos e promover o desenvolvimento socioeconômico regional para reduzir as imensas desigualdades. Na dimensão política, a sustentabilidade preconiza a geração de riquezas e desenvolvimento, construção de infraestrutura, criação de organizações forte e ativas, e deve contribuir com um legado para a sociedade. Deve ser alinhada à Agenda 2030 de desenvolvimento das Nações Unidades e procurar atingir as metas dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) vinculados a esta agenda. Dentre os vários ODS, destacam-se especialmente os pequenos produtores e a eliminação da pobreza, o combate à fome e segurança alimentar e nutricional, agricultura produtiva e regenerativa, competitiva e inclusiva, justa e resiliente, além de conservação dos ecossistemas terrestres e dos recursos hídricos.
Apesar da sustentabilidade ser uma diretriz muito desejada e procurada, sua métrica difícil a torna um horizonte cinzento e nublado, o que dificulta sua adoção generalizada. Pressupõe a integração, com elevado grau de interdependência e equilíbrio entre os aspectos ambientais, econômicos e sociais. Portanto, sustentabilidade é de fácil definição, mas difícil de ser atingida e mantida. Quando alcançada, não é um equilíbrio estável, e pode se alterar facilmente por fatores externos. Atualmente se adota uma nova abordagem de sistemas sustentáveis, que incorpora princípios regenerativos que se sustentam em fundamentos naturais da agricultura orgânica, porém os critérios definidores são mais flexíveis em termos de manejo e uso de insumos da produção. Dessas mudanças, surge a agricultura regenerativa, uma nova concepção, um novo estágio da agricultura sustentável, que engloba sistemas de produção fundamentados em técnicas regenerativas e que incorporam também os aspectos sociais. Esse modo de produzir é muito promissor e já tem ampla aceitação pelos produtores e consumidores.
Com uma visão de futuro, busca-se colocar mais ênfase na essencialidade das atividades de produção para a sobrevivência humana e adotar uma visão mais ampla do framework da sustentabilidade, focando na disponibilidade ou escassez dos recursos e seus limites. Como visão estratégica para a próxima década, se busca explorar a sinergia de duas visões independentes, mas muito convergentes, que é inovação e sustentabilidade, dando origem a um novo conceito, a inovabilidade, ou seja, inovação para sustentabilidade. As discussões sobre sustentabilidade são geralmente repletas de visões polarizadas, polêmicas, e falta de consenso, que frequentemente travam os diálogos construtivos. Para enfrentar estas situações, temos de construir um novo discurso e uma nova concepção, tirando o foco dos aspectos negativos da atividade. Surge uma nova ideia baseada em tradeoffs entre impactos positivos e negativos do empreendimento ou das práticas adotadas, chamado Net positive. A agricultura, como qualquer outro empreendimento, se encaixa muito bem nesse conceito, que é muito útil em estudos de cenários e na visão de futuro. Como um novo conceito ambicioso e de vanguarda, estabelece boas práticas para negócios sustentáveis e se fundamenta nas seguintes diretrizes: a) colocar mais na sociedade do que retira de recursos; b) minimizar, mitigar e compensar os impactos negativos; c) estabelecer objetivos e metas com base nos limites ambientais e sociais; d) promover mudanças perceptíveis nos negócios, e e) garantir sua contribuição para o desenvolvimento sustentável. Para atingir sua materialidade, o Net Positive se fundamenta nos seguintes critérios principais: a) os impactos devem ser demonstráveis e mensuráveis; b) os resultados devem ser entregues de maneira robusta; c) nunca compensar impactos inaceitáveis ou irreversíveis; d) atuar nos limites da ética e da transparência, e e) criar impacto positivo através de parcerias amplas.
Os desafios do desenvolvimento na Amazônia
A crise planetária das mudanças do clima e da produção de alimentos, da perda da biodiversidade e da degradação ambiental coloca a Amazônia em grande evidência no cenário mundial. Como síntese das considerações críticas destas questões pode-se destacar: a) a área mais dinâmica de mudança de uso da terra e a última fronteira global para o desenvolvimento sustentável; b) está sob forte pressão para ocupação humana, que coloca este bioma sob riscos e ameaças pela elevada emissora de carbono, processo de savanização, perda da biodiversidade, regulação hídrica e desigualdade econômica; c) a Amazônia encontra-se em vulnerabilidade social severa; alto índice de insegurança alimentar grave, sendo este 3 vezes maior que a do Sul/Sudeste; d) é mandatório o rompimento do ciclo de destruição das riquezas e de reprodução da pobreza; e) é urgente uma economia, investimentos inovadores, desenvolvimento próprio com prosperidade recorrente, e f) entender o dualismo econômico e contraditório que existe na Amazônia: Extrativismo de subsistência x Capitalismo avançado de base de recursos naturais.
A Amazônia é um dos mais ricos e valiosos patrimônios naturais do Planeta que não pode ser destruído de maneira irracional, como vem acontecendo. Mas não basta apenas proteger seus recursos naturais; é necessário transformá-los em bens econômicos e gerar riquezas compartilhadas capazes de promover o desenvolvimento sustentável da região. Esse desenvolvimento tem de ser compatível com a preservação ambiental, ser capaz de manter a floresta em pé e retirar da pobreza absoluta a maior parte dos quase 30 milhões de habitantes que vivem na região. Por esse ponto de vista, a Amazônia é um grande paradoxo: de um lado, uma riqueza imensa estimada em dezenas de trilhões de dólares, e do outro estados e municípios sobrevivendo precariamente de transferências federais, enquanto comunidades desassistidas sobrevivem de um extrativismo atrasado que só contribui para perpetuar a pobreza e miséria na região. Diversos planos de desenvolvimento da Amazônia já foram implementados em diferentes ciclos e períodos da história do Brasil, mas os ciclos de desenvolvimento implantados até aqui não trouxeram os resultados esperados, e o resultado é uma região com índice de progresso social no nível dos países mais pobres da África. Reverter esse quadro é um dos maiores desafios que o Brasil terá de enfrentar no século XXI.
Legitimamente, o país sofre forte pressão de vários setores para reduzir o desmatamento na Amazônia. As pressões internas são motivadas principalmente pela intensa pobreza e elevada vulnerabilidade, enquanto as externas surgem dos impactos da degradação ambiental e de outros interesses de países desenvolvidos. Como opção para se promover o desenvolvimento sustentável, temos de converter a economia extrativista instalada na Amazônia em uma economia nova baseada no Conhecimento. Apesar de ser uma atividade econômica compatível com a natureza, de modo geral o extrativismo que lá é praticado em sua maior extensão não é sustentável, pois baseia-se em oferta fixa de recursos determinada pela natureza, sendo viável apenas enquanto pequeno e gerando produto de baixo valor de mercado. Quando ganha escala de produção, os produtos se valorizam e o mercado cresce, a exploração extrapola os limites naturais desses recursos, que pode se exaurirem ou exigirem ampliação para novas áreas, causando degradação. Isso já está acontecendo com a cadeia do açaí, cujos recursos disponíveis não suportam as pressões do mercado.
Precisamos de uma nova economia que seja capaz de atrair investimentos inovadores, sustentáveis e compatíveis com a realidade local e que tenha como pressuposto o uso sustentável dos recursos naturais estabelecido em bases científicas e empregando uma abordagem holística e específica para cada situação. Estas iniciativas devem ser fundamentadas nos conceitos da sustentabilidade, considerando as características dos territórios envolvidos e o status das diferentes regiões em relação às condições humanas, culturais e ambientais e ao uso racional da terra e de demais recursos naturais que formam a base da economia da Amazônia.
Nesse modelo, a abundância dos recursos naturais biológicos, como os da flora e da fauna, representa a plataforma de alavancagem de uma Bioeconomia Tropical Sustentável, estruturada na verticalização do uso da biodiversidade, na produção de bioinsumos e de produtos diversos da floresta e dos rios, no pagamento de serviços ambientais e numa ampla gama de oportunidades de inovações tecnológicas em cadeias promissoras: a produção de energia, fármacos, novos materiais e matérias primas, alimentos naturais e de superalimentos.
Considerando a ampla riqueza, a diversidade e a vocação dos territórios da Amazônia, esse bioma pode se tornar o maior celeiro global de produtos naturais extraídos da floresta e de seus componentes, feitos de modo planejado e com manejo sustentável em sistemas agroflorestais naturais ou implantados tecnicamente em áreas já devastadas. Esses sistemas devem ser concebidos em práticas agroecológicas e nos princípios restauradores da agricultura regenerativa. As oportunidades de negócios sustentáveis são diversas e se estendem a áreas já desmatadas e com aptidão para sistemas de produção intensiva de grãos de baixo carbono, fruticultura, pecuária intensiva de corte e leite, incluindo os sistemas de integração lavoura com pecuária e florestas, sistemas agroflorestais, pimenta do reino, horticultura e fruticultura e madeiras plantadas, incluindo reflorestamento com espécies nativas de elevado valor econômico ou ecológico e restaurador, cultivos para bioenergia, aquicultura e pesca e inúmeras outras atividades vocacionadas dos diversos ecossistemas que compõem o bioma.
A vulnerabilidade social e a fome estão entre os maiores problemas a serem enfrentados na Amazônia, e só conseguimos enfrentar a pobreza gerando riquezas, e essas podem vir de todos os recursos do bioma, e não somente da bioeconomia. As inúmeras fontes de geração de riquezas devem atuar de maneira sinérgica e complementar para garantir equidade e estabilidade econômica do processo de desenvolvimento. Nesse contexto, há que se considerar a extração de bens minerais, uma vez que o subsolo da Amazônia é muito rico e diverso em termos de recursos minerais. Atualmente, a mineração contribui com 40% da produção mineral do Brasil e gera cerca de U$ 10 bilhões/ano. A extração mineral feita de maneira legal e responsável gera grande riqueza, usando pouca extensão de terras (0,02% de uso das terras da Amazônia) e gerando impactos que são reversíveis com tecnologia apropriadas. Nenhuma outra atividade econômica possível na Amazônia gera tanta riqueza quanto a mineração; e essa riqueza gera muito valor compartilhado para a região onde explora, como ocorre na província mineral de Carajás, no Pará.
O grande desafio para nos livrarmos do extrativismo predatório na Amazônia é encontrar soluções capitalistas sustentáveis para os negócios da região. Embora ainda pouco comuns, já existem vários negócios exitosos e que conservam a floresta, mas no geral esses têm pouco impacto no desenvolvimento social e econômico e enfrentam dificuldades para se manterem ou ampliarem suas escalas de produção e de mercado. Além de inúmeros produtos compatíveis com a floresta, comercializados na própria região, cerca de 60 desses produtos já são exportados para diversos países. No entanto, a participação da Amazônia brasileira nesse mercado multibilionário de produtos não madeireiros da floresta é ainda muito pequena, já que representa apenas 0,17% de um mercado global estimado em mais de U$ 2,0 bilhões anualmente. Isso deixa evidente o grande potencial de mercado dos produtos compatíveis com a preservação da floresta, mas esse mercado não é atingido por práticas extrativistas com pouco ou nenhum acesso ao conhecimento e que não adota processos de produção inovadores. Há que se melhorar de modo acentuado as técnicas de produção, manuseio e de acesso ao mercado.
Existem oportunidades para implantação de novas atividades econômicas vocacionadas e bem planejadas para serem sustentáveis e resilientes e que respeitam os limites ambientais e culturais do bioma. Essas atividades econômicas devem contribuir para mitigar a miséria e reduzir a ampla desigualdade social na região; operar na linha de frente do combate ao aquecimento global e da perda da biodiversidade; responder à demanda crescente por produtos da floresta e alimentos seguros e mais saudáveis, além de servir de espelho para ações sustentáveis em outras regiões tropicais do Planeta.
As oportunidades de negócios sustentáveis na Amazônia, como aquelas baseadas no conceito do capitalismo regenerativo e em práticas agrosilvopastoris conservadoras do meio ambiente são, pelo menos em tese, infinitas e podem ser categorizadas em vários eixos como: a) negócios de base na natureza e compatíveis com a floresta em pé, que se baseiam no extrativismo e que já contam com diversas cadeias em operação, sendo a maioria de caráter de subsistência e com pouca sustentabilidade. Neste grupo destacam-se os produtos vegetais típicos da floresta, como açaí, palmito, castanha, babaçu, borracha, ceras, aromáticos, medicinais, corantes, fibras, gomas e óleo de copaíba. Há aqui inúmeras oportunidades para novos negócios de base tecnológica e gestão inovadora, com destaque para novos produtos, melhoria dos processos e ainda negócios baseados em novas descobertas da Ciência; b) negócios em áreas desmatadas e degradadas visando sua recuperação e restauração ambiental e intensificação sustentável de sistemas agropecuários, aproveitando os benefícios da devastação já ocorrida. Há extensas áreas vocacionadas para atividades econômicas que podem ser aproveitadas de diversas maneiras a depender da localização, qualidade das terras e de seu status de degradação. Neste caso, em propriedades com conformidade ambiental, como prevê o marco regulatório para esse bioma e o zoneamento ecológico econômico, é possível a implantação de atividades direcionadas ao mercado de carbono e proteção da biodiversidade e dos sistemas de produção com variados graus de tecnologia e de complexidade: regeneração espontânea ou assistida da floresta; reflorestamento com fins econômicos ou de restauração ambiental; implantação de sistemas integrados de produção agrícola e pecuária, como sistemas agroflorestais tradicionais ou mais elaborados e de alta tecnologia com ILPF; pastagens de alta performance para intensificação da pecuária; sistemas de produção agrícola, como cultivos de grãos (soja e milho) de baixo carbono; sistemas de hortifrúti, com espécies nativas e naturalizadas, vocacionadas à ampla diversificação do bioma e cultivos perenes com produtos e finalidades diversas como cacau, açaí, dendê, seringueira, fibras, castanha, guaraná, corantes, cosméticos, fármacos e outros. Considerando as condições edafoclimáticas e culturais da Amazônia, há enorme potencial para a estruturação escalonada de sistema de produção orgânica de uma variedade de hortaliças e frutas como o próprio açaí, palmito, pupunha, camu-camu, cacau, manga, abacaxi, citrus, acerola, caju, melancia, mandioca, jambu e pimentas. É importante mencionar que já existe em várias regiões da Amazônia uma agricultura potente e bem diversificada, composta de sistemas que vão do extrativismo de subsistência a sistemas com tecnologias avançadas e respeito ao marco regulatório ambiental, com elevada sustentabilidade e resiliência. A agropecuária é bem localizada em certas regiões da Amazônia, onde, de acordo com o MapBiomas, já ocupa 17% da área, com 15 milhões de ha de lavouras e 70 milhões de ha de pastagens em diferentes graus de produtividade, comportando 90 milhões cabeças de gado, cuja produção contribui com 5% do PIB agropecuário do bioma. Na Amazônia tem muito mais gado do que gente. A agricultura contribui com um PIB de R$ 84 bilhões, o que corresponde a 13,7 % do PIB regional, sendo que 41,7% desse PIB vem da soja. Há um grande potencial para a expansão agrícola sem que haja novos desmatamentos e em pleno respeito à legislação ambiental. Apenas no Estado do Pará o governo indica haver 26 milhões de ha de terras disponíveis, onde se pode cultivar 15 culturas diferentes e aumentar em 3 vezes a produção pecuária, tendo a produção comercial de pescado o mesmo potencial de crescimento. Há ainda 7 milhões de ha de florestas aptos ao manejo florestal sustentável para extração de madeiras de elevado valor comercial; c) outros produtos animais como os oriundos da aquicultura e pesca manejada, com tremendo e diversificado potencial produtivo e com elevada competitividade de mercado, além da produção de méis de abelhas africanizadas e nativas e exploração búfalos naturalizados na região.
Uma das diversas atividades de fomento ao desenvolvimento sustentável da Amazônia são os Polos Demonstrativos, capitaneados pelo Fórum do Futuro. Estes são projetos de desenvolvimento de base em C&T e comunicação que se estruturam a partir de tecnologias-âncora inovadoras e calcadas nos princípios da sustentabilidade. Os Polos têm como estratégia organizar, disponibilizar e aplicar o conhecimento apropriado para a inovação em territórios dos biomas tropicais para promover a segurança alimentar, a prosperidade e a paz. A missão principal é integrar de maneira inovadora aspectos da Natureza, da Ciência e da Tecnologia na geração de riquezas compartilhadas e capazes de promover o desenvolvimento, respeitando os limites dos recursos naturais e o atingimento da sustentabilidade plena dos territórios. Tem como valor guiar as iniciativas pelos padrões éticos e morais universais do processo civilizatório, estimulando a participação democrática de jovens, mulheres e homens no desenho e na construção do próprio futuro, buscando ser referência global em processos de inovação inclusiva, ética, restauradora e sustentável em territórios dos biomas tropicais.
Em torno dos Polos são agregadas ações de C &T, empreendedorismo e mercado, educação, meio ambiente e cultura, envolvendo pesquisadores, stakeholders, organizações locais e comunidades. Inicialmente, partimos de demandas qualificadas de atores locais e stakeholders que são internalizadas em visão acadêmica para a definição de ações de desenvolvimento. Os projetos são inicialmente selecionados com base em critérios mínimos como: a representatividade geográfica, econômica, ambiental e cultural no bioma; existência no território de ICTs, organizações e representação política e da sociedade civil com ações aderentes a finalidade do projeto; existência de atores locais com interesse na sua implantação; existência de temas ou produtos alinhados às diretrizes e escopo do projeto biomas; potencial multiplicativo e para escalonamento e replicabilidade da atividade econômica; potencial de mudança de atividade extrativista para bioeconomia de base científica e tecnológica; analise de viabilidade da implantação e condução; potencial de impacto econômico, social e ambiental no âmbito dos princípios básicos da sustentabilidade, com destaque para geração de renda e preservação da floresta. Seguindo tal metodologia, após vários estudos e reuniões foram prospectados alguns projetos que se encontram em fase de concepção, troca de informações gerais e complementação técnica para posterior avaliação desta etapa intermediaria do fluxo de projetos para então serem submetidos à apreciação do Conselho do Fórum. O FF articulou e coordenou a implantação de um projeto sobre agricultura regenerativa na região de Rio Verde, no estado de Goiás, e o Polo de SINOP, que se encontra em fase de implantação.
*José Oswaldo Siqueira é Engenheiro Agrônomo, PhD., Professor Emérito da UFLA, Conselheiro do Fórum do Futuro, Membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento, e ex-diretor do CNPq e do Instituto Tecnológico Vale