Estevão Seccatto Rocha*
O lockdown resultou em queda de 20% das receitas dos 20 maiores clubes brasileiros o ano passado e o endividamento aumentou em cerca de R$1,6 bilhão, atingindo máximo histórico de R$10,3 bilhões. A situação financeira frágil não vem de hoje. Quando comparamos os clubes nacionais com outras ligas, notamos déficit gigantesco em questões de governança e gestão. Enquanto na Europa a maioria dos clubes são clube-empresa, com diversos times listados em bolsa (alguns em seus países e outros na NYSE), 92% dos times brasileiros ainda são associações sem fins lucrativos. Ainda, contam com gestão pouco profissionalizada, focadas em disputas políticas, perpetuação do poder dos dirigentes, tomada de decisão influenciada pela pressão da torcida, falta de planejamento de longo prazo e, consequentemente, elevado passivo, impagável, com o fisco, funcionários (entre eles os jogadores), fornecedores e instituições financeiras, passivo este constituído ao longo de décadas de ineficiência.
A gestão de um clube deveria ser pautada pela criação de valor sustentável. Investimentos com TIR maior que custo de capital (seja em jogadores, estádios, equipe técnica), focando no aumento de receita (patrocínios, venda de produtos licenciados, direitos sobre jogadores, transações de atletas, direitos de transmissão, sócios-torcedores e bilheteria) e redução de custos (salários condizentes com performance e estrutura de custos condizente com receitas). O que observamos são erros e mais erros de alocação de recursos. Falhas grosseiras, e cuja única punibilidade seja talvez o desgosto momentâneo da torcida, até que o próximo campeonato seja vencido. O mindset do dirigente tradicional é ganhar títulos no curto prazo, e contrair dívidas no longo prazo. Torcida feliz, problema empurrado para a frente e garantia de mais alguns anos no comando do clube. Caso o título não venha, derruba-se o técnico e paga-se a multa contratual milionária ao profissional, a fim de dar uma “pronta-resposta” à torcida. Lamentável.
Recentemente tivemos com o Figueirense (R$165 milhões de dívidas) o primeiro caso de recuperação judicial (RJ) de um clube de futebol no país, processo liderado pela Alvarez & Marsal. A questão foi inicialmente controversa uma vez que, pela lei o 11.101/05, a entidade precisaria ter o status de clube-empresa por pelo menos 2 anos antes de utilizar-se deste artifício, mas segundo o advogado responsável pela RJ, Luiz Roberto Ayoub, “uma associação pode ser revestida deste nome, mas ser uma empresa se forem atividades que geram riqueza”, argumento que foi aceito pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o que abre precedente, mas ainda não cria jurisprudência sobre o tema, que pode ser analisado sob outra ótica por outros tribunais. Porém, sabemos de RJs são medidas paliativas.
Outros clubes vêm buscando auxílio de empresas especializadas para reestruturarem sua gestão. É o caso do Vasco, que conta com a KPMG. A gestão passou a focar no corte de custos (redução de 35% da folha, salvando R$40 milhões por ano), mudança para sede isenta de locação, suspensão de certas práticas esportivas não lucrativas, revisão de contratos, renegociação dos passivos (que somam R$720 milhões), especialmente os trabalhistas, aumento da arrecadação com o programa de sócios-torcedores, criação de conselhos, melhorando a governança, entre outras diversas ações.
Uma inovação trazida ao mercado são os “Fan Tokens” já utilizados na Europa. São ativos digitais, cujos investidores terão uma parcela dos direitos que os times possuem pelos jogadores formados em sua base. O primeiro clube brasileiro a aderir foi o Atlético Mineiro. Isso não apenas traz recursos ao clube (no caso do Vasco cerca de R$10 milhões), como alinha os interesses da torcida, que passa a ser “sócia” do jogador. Outro clube que já aderiu ao “Fan Tokens” foi o Cruzeiro.
Um caso emblemático de reestruturação bem sucedida foi o Flamengo, que em 2012 acumulava R$800 milhões de dívidas (R$1,3 bilhão ajustado pelo IPCA acumulado de dezembro 2012 até junho 2021). Para ser justo com a as comparações temporais, vou apresentar todos os dados financeiros desta matéria com valores ajustados pelo IPCA até junho de 2021.
Eduardo Bandeira de Mello (35 anos de BNDES) foi eleito presidente do clube e iniciou a reformulação para um elenco que coubesse no caixa, renegociou o passivo e recuperou a credibilidade do time que, em 2 anos, reverteu prejuízo de R$32 milhões para lucro de R$210 milhões.
A gestão também foi feliz em retomar patrocínios e engajar os torcedores. A redução do endividamento permitiu reforço do elenco e categorias de base. Atualmente o clube está vencendo campeonatos e apresenta o maior faturamento do Brasil (R$702 milhões em 2020 vs. R$1,0 bilhão em 2019). Em 2012 ocupava a 6ª posição com R$342 milhões. Mesmo com a queda de receita em R$310 milhões, de 2019 para 2020, o clube apresentou prejuízo de R$112 milhões, demonstrando habilidade em conter custos e, agora, está na 7ª posição no ranking e endividamento (R$716 milhões).
Outro caso que vale a pena comentar é a rivalidade Palmeiras vs. Corinthians na questão dos estádios, que demonstra quão importante é a estrutura de investimentos para a sustentabilidade de um negócio.
O modelo adotado pelo Palmeiras foi a construção (R$900 milhões), 100% arcada pela construtora WTorre. A WTorre, por sua vez, financiou 100% do valor com o Banco do Brasil, não conseguiu honrar com o pagamento das parcelas e foi forçada a uma renegociação com o banco. Atualmente a dívida inadimplida supera R$1,0 bilhão, mas nada tem a ver com o Palmeiras, uma vez que as garantias dadas pela WTorre ao Banco do Brasil foram apenas direitos de locações futuras da Arena, de shows e eventos.
Neste modelo, todo investimento foi feito pela construtora, em troca do direito de explorar o estádio por 30 anos, exceto em dias de jogos do Palmeiras, que fica com 100% das receitas de bilheteria. Esse modelo é vencedor, uma vez que não causa obrigações financeiras ao clube que terá, após esse período, seu estádio sem qualquer restrição de uso. Esse alívio financeiro permitiu ao Palmeiras investimentos em jogadores e consequentemente entrar numa espiral positiva de saúde financeira, investimentos e títulos. Atualmente, o time é o terceiro do país em receita (R$642 milhões vs. R$ 394 milhões em 2012) e, apesar do prejuízo de R$157 milhões em 2020, sua dívida está na casa dos R$595 milhões, ocupando a 10ª posição no ranking de endividamento.
Já o modelo adotado pelo Corinthians foi o da construção, pela Odebrecht, 100% financiada pela Caixa Econômica Federal, mas com passivo assumido pelo clube, cujo valor atual monta R$598 milhões e cujos juros já causaram déficit de caixa de R$240 milhões (que poderiam ter sido investidos em jogadores, por exemplo). As receitas de bilheterias ficam depositadas uma conta escrow, utilizada para amortizar a dívida, o que complica ainda mais a situação do time. Recentemente o presidente do clube, Duílio Monteiro Alves, anunciou que, com o perfilamento da dívida e a venda de naming rights para a NeoQuímica, a dívida cairia para R$270 milhões, com prazo de pagamento de 20 anos e retenção de “apenas” 50% das receitas de bilheteria, o que poderia dar algum folego ao time, que, com prejuízo de R$130 milhões em 2020, acumula a terceira maior dívida entre os clubes brasileiros.
Em 2020 o Corinthians teve receita de R$498 milhões (contra R$574 milhões em 2012, ano que foi #1 no ranking de faturamento), um decréscimo de 13% no período, enquanto sua dívida passou de R$275 milhões para R$1,0 bilhão, um aumento de 3,5x. O Flamengo, no mesmo período, aumentou sua receita em 2,1x e reduziu seu passivo em 45%. Já o Palmeiras aumentou sua receita em 1,6x, e seu passivo aumentou 25%.
O Corinthians é o típico caso da empresa líder que, por má gestão, perde seu posto. Não fossem os fiéis torcedores (diferente dos clientes que abandonam a marca que oferece pouco valor agregado), o desfecho do clube seria pior. Como todo bom corinthiano, eu sofro, mas tenho esperança de que a gestão atual, suportada pela empresa especializada que contratou (KPMG), passará a dar bons resultados, priorizando a transformação estrutural aos títulos.
Centenas de times de todas as divisões de todos os campeonatos municipais e estaduais enfrentam a mesma situação, em maior ou menor criticidade, de acordo com suas micro realidades. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) tem buscado impor mais regras aos clubes, como o “Fair Play Financeiro”, exigindo responsabilidade nos gastos (mantendo endividamento e déficit dentro de limites de acordo com a receita) com algumas penalidades. Com a pandemia, a implantação ficou para 2022.
Existe ainda um projeto de lei visando incentivar clubes tornarem-se empresas, aprovado no Senado em junho 2021 (PL 5.516/2019), para ser votado na Câmara, com constituição de Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), estabelecendo padrões de governança, transparência, financiamentos tributários especiais, emissão de títulos e debêntures, regulação pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários), com possibilidade de fundos de investimento na gestão, administração com dedicação exclusiva, conselho de administração, entre outros. Vamos observar se passa e como passa essa lei.
Outra discussão motivada por representantes dos 40 clubes da série A e B, é a criação de uma Liga de Clubes que pretende assumir a organização do Campeonato Brasileiro e da Série B, como acontece nas principais ligas europeias. A CBF continuaria administrando a seleção brasileira e outras competições nacionais. A solução seria a centralização de direitos comerciais, transmissões, patrocínios (placas e naming rights), que conseguiria impulsionar as receitas dos clubes. Os recursos para financiar a Liga e reduzir o endividamento dos clubes viria de fundos de investimentos que tornar-se-iam sócios dos clubes.
Essas ações que estão surgindo me dão esperança de que um dia teremos um setor organizado, mas ainda tem muita bola pra rolar até que os padrões de governança e gestão dos clubes brasileiros cheguem perto dos padrões europeus. Aliás, falta muito treino para que a qualidade do futebol também se equipare.
*Estevão Seccatto Rocha é professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE), reestruturador de empresas pela KPMG e IVIX, diretor da G4S (LSE) e associado no private equity Artesia. Conselheiro de administração pelo IBGC. Assessorou mais de uma centena de empresas. www.seccatto.com