Gosto muito de uma série documental do Netflix chamada “The Playbook”. Os leitores me perdoem pelo título em Inglês, mas não tem outro em Português. Poderia traduzir livremente como um livro de brincadeiras, mas na vida de uma empresa o Playbook é uma ferramenta que descreve as tarefas e as estratégias para se atingir determinadas metas. Essa série vai tentar decifrar o Playbook de técnicos famosos de atletas de alto desempenho, como se traçam estratégias para enfrentar as adversidades e montar times vencedores. O primeiro episódio retrata um técnico de basquete da NBA, Doc Rivers.
Durante a filmagem, Doc era técnico do Los Angeles Clippers, que montou um elenco estrelado para tentar ganhar um título que só o outro time de Los Angeles, o Lakers, conseguia ganhar. Ele não conseguiu, foi mandado embora e hoje está em outro time de ponta, mas esse não é o foco desse artigo. Doc Rivers falou sobretudo sobre outro trabalho que realizou, no Boston Celtics, em 2008. Como o Clippers, o Celtics também montou um timaço, com três grandes estrelas, visando ser campeão e superar adivinha quem? Sim, os Lakers. Contrataram três cracaços, chamados pela imprensa “Os Super 3” e deixaram a tarefa de montar o time para o então jovem Doc Rivers. Ele reuniu os caras na sua sala e falou que se eles tentassem ser o que eram nos seus times anteriores, as estrelas, os fodões, não iria funcionar. Para grandes estrelas poderem jogar no mesmo time, seria preciso o sacrifício de uma parte de suas individualidades em função do grupo. O que ele não imaginava é que durante um evento do clube, uma senhora o chamaria de canto para sugerir que ele implementasse na sua vida o Ubuntú.
Doc Rivers, um afro americano como a senhora e a maior parte de seu time, levou em conta o que a senhora falou e foi estudar o assunto no seu quarto. Passou a noite inteira acordado estudando. Para quem nunca ouviu falar, Ubuntú é um nome e filosofia de origem africana, que quer dizer: “Eu sou porque nós somos”. Vou dar um exemplo do próprio episódio: ao final do jogo, uma repórter entrevistou um jogador que tinha jogado uma partida perfeita defensivamente. Ela o cumprimentou e perguntou: “Como você conseguiu? ”Ele respondeu de pronto, sem pensar: “Eu não, nós. Eu consegui fazer um bom jogo porque meus colegas estavam nos seus lugares na hora certa, fazendo a parte deles. Sozinho eu não faria nada”.
Ubuntú é a legítima capacidade de se alegrar e trabalhar pelo sucesso do outro, do próximo, daquele que, quanto mais sucesso tiver, mais vai me beneficiar. É uma filosofia de crescimento do Grupo que vai depender e retroalimentar o sucesso de cada um.
O leitor e a leitora podem, nesse momento, torcer o nariz para a ideia e achá-la utópica, ingênua. A vida corporativa é um sistema darwiniano que deixa poucos sobreviventes e cada um precisa defender a sua posição. Algumas lideranças estimulam a competição e a rivalidade entre os grupos e as pessoas com a intenção que esse embate gere a eletricidade para atingir os resultados esperados. Eu considero esse método antiquado e gerador de muito desgaste para todos, líderes e liderados. Os estudos de Neurociência demonstram que tentar propiciar felicidade gera mais prazer do que tentar sempre levar vantagem ou esmagar o colega do lado. Como Doc Rivers falou para suas três estrelas, para fazer daquele grupo um time era preciso que eles sacrificassem um pouco de sua genialidade para colocar aquilo à serviço do grupo. Pensando em grupo. E comemorando o sucesso dos colegas, porque é o sucesso de todos.
Para construir a paz dentro do ambiente de trabalho, é raro encontrar um cara como Doc Rivers. Mas é meio urgente que se deixe para trás o modelo darwinista de sobrevivência do mais apto. Nas empresas, como na vida, ou sobrevivemos juntos ou perecemos juntos. Essa consciência vem se ampliando, com a ênfase cada vez maior em criar sistemas de colaboração dentro dos grupos e das organizações. Foi assim que sobrevivemos como espécie e não viramos repasto de predadores: vivemos em grupo, dividimos tarefas e protegemos nossas crias. Talvez Ubuntú seja um estilo de vida mais antigo do que o Homo sapiens.
Construir a Paz dentro da vida corporativa demanda muito Ubuntú. Somos seres naturalmente medrosos, competitivos e carentes. Todos querem atenção, respeito, reconhecimento. Entretanto, para atingir um objetivo é preciso um sacrifício dessas carências para viver em grupo. As redes sociais criaram a sensação de que tenho que ser “eu mesmo” e dane-se o resto. Isso gera indivíduos solitários, ressentidos, desconectados. As consequências estão todas aí, debaixo de nossos olhares cansados.
Podemos trabalhar para ver alegria nos olhos do Outro. E precisamos, urgentemente, ensinar isso aos mais jovens.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta younguiano e autor do livro “Stress o Coelho de Alice Tem Sempre Muita Pressa”