Acompanho a Eternit com certa distância, até que fui provocado a ministrar uma aula sobre um caso de sucesso de turnaround de empresa listada em bolsa. Daí a motivação de discorrer um pouco sobre o que entendo deste caso de reestruturação.
A Eternit foi fundada em 1940, e encontra-se listada no Novo Mercado da B3 desde 2006, (ETER3). Em novembro/17 o STF proibiu a comercialização de amianto no Brasil. Em 2018, a ETER3 pediu Recuperação Judicial (“RJ”), em 2020 a empresa retoma a extração de amianto, em detrimento à determinação do STF. História confusa. Adoro esse tipo de situação.
A empresa tem como acionistas pessoas físicas e jurídicas, clubes de investimento, fundos de investimento e fundações, e atua nos mercados de telhas de fibrocimento (líder nacional), produtos de cimento, concreto, gesso e produtos de matéria plástica e outros materiais de construção e respectivos acessórios. No mercado de telhas, Eternit e Saint-Gobain dividem 50% do mercado, ambas com 25%, e os demais 50% estão pulverizados entre oito competidores. Com sede na cidade de São Paulo, atualmente possui mais de 2 mil colaboradores, em 6 unidades industriais, 1 mineradora.
Fonte: demonstrativos financeiros da empresa.
Em 2015 e 2016 a queda da receita foi justificada pela queda geral no setor de construção civil. Já em 2017/ 2018/ 2019, a redução das vendas deveu-se, segundo a administração, pela proibição do amianto.
Fonte: demonstrativos financeiros da empresa.
Em 2020, após reestruturação que detalharei a seguir, e com a retomada da mineração e início de novas linhas de produtos, a empresa voltou a crescer e apresentar margens sustentáveis.
Fonte: demonstrativos financeiros da empresa.
Não à toa, refletindo a queda nas receitas, a geração de caixa operacional e volume de investimentos foram bastante afetados já a partir de 2015, situação que só voltou a estabiliza-se em 2020. Atenção especial às despesas financeiras de 2016 e 2017, período pré recuperação judicial.
Em 2017, quando o STF decide pela proibição do fibrocimento no Brasil, “a empresa previu a dificuldade de operar sem a matéria-prima e procurou se prevenir” afirma Luís Augusto Barbosa, CEO. Ainda, segundo Barbosa, em entrevista ao Estadão em 07/12/2020, “Foi a decisão de abolir o amianto, em 2017, que nos levou à recuperação judicial”.
Vejamos, em 2017, a companhia parou de usar amianto na produção de telhas, precisando realizar investimentos relevantes na mudança do seu processo fabril, com muitos ajustes de rota ao longo de 2018 e 2019. A fibra de polipropileno, produzida na unidade em Manaus, passou a substituir o amianto. Ainda, a menor produtividade e maior refugo, impactaram a rentabilidade e a geração de caixa, com a interrupção da atividade de mineração de amianto. “Já sabíamos que seriam anos difíceis, por isso pedimos a recuperação judicial, de forma preventiva”, afirmou Barbosa.
Ajuizado em 19 de março de 2018, na Comarca da cidade de São Paulo, nos termos da Lei nº 11.101/05, o pedido de RJ teve o intuito de atender ao interesse dos stakeholders: (i) preservar a continuidade das atividades e função social; (ii) cumprir com os compromissos assumidos com clientes; (iii) preservar, de forma organizada, os interesses e direitos dos fornecedores, credores e acionistas; e (iv) proteger o caixa objetivando mitigar riscos operacionais.
Segundo a administração, o pedido de RJ deveu-se, principalmente a: (i) persistente deterioração dos fundamentos da economia, que afetaram os setores de construção civil e louças sanitárias, mercados atendidos pelo Grupo; (ii) discussões legais acerca da extração, industrialização, utilização, comercialização, transporte e exportação do amianto, que vinham impactando as operações do Grupo e limitando o acesso à concessão de novas linhas de crédito; e (iii) queda na demanda e nos preços de venda do amianto, nos mercados nacional e internacional, reduzindo a rentabilidade.
O Plano de Recuperação Judicial previa a venda de ativos não operacionais, bem como da Unidade Produtiva Isolada de Louças Sanitárias, para pagar credores. “Nosso plano praticamente não tirava recursos da operação, foi feito a partir da venda de imóveis (R$180mm), com exceção da fábrica de louças e metais sanitários do Ceará, a Companhia Sulamericana de Cerâmicas (R$102mm)”. A dívida concursal da companhia reduziu 40,5% desde o pedido de RJ.
O interessante neste caso é que, diferente de milhares de outros casos em que a RJ é apenas uma medita protelatória de um final já sabido por todos, uma série de ações operacionais e estratégicas foram adotadas pela empresa, afim de remodelar o negócio em si.
Listo aqui as principais ações do Plano de Reestruturação proposto em 2017 e executado ao longo dos anos, extraídas dos relatórios anuais da companhia:
Renovação da diretoria: eleição de Luis Barcelos Barbosa (CEO), Rodrigo Inácio (Comercial). Desligamentos dos diretores de mineração e de recursos humanos.
Redução de pessoal direto e indireto: adequação da operação tendo em vista redução da produção e níveis de estoques. Adequadas as estruturas comercial e administrativa para o novo porte da empresa, com desligamento de 400 colaboradores em 2017.
Redesenho da área comercial: substituição de gerências regionais, centralização da administração de vendas. Objetivo – aumento do market-share, ampliação de pontos de revenda, alavancar as vendas do canal B2C (especifico para telhas de concreto), melhor precificação com a criação da área de pricing.
Supply chain: busca de maior sinergia e ganho de escala, com modelo corporativo para o processo de aquisição de matérias primas, insumos, logística e planejamento de produção para todas as unidades, com gerências exclusivas para estas áreas.
Redirecionamento do amianto para mercado externo: para atender clientes em países aonde o produto é permitido. A reserva mineral prospectada é para mais 35 anos de vida útil.
Elevação da taxa de ocupação da planta de Manaus: responsável pela fabricação de fibras de polipropileno, elevou sua capacidade produtiva de 25% para 85%. Volume direcionado para a fabricação de telhas de fibrocimento, em substituição ao amianto crisotila. Produção suficiente para atender a Eternit e demanda de terceiros (O&M).
Encerramento das unidades deficitárias da controlada Tégula: atuação em mercados com maior rentabilidade operacional, concentrando na unidade de Atibaia/SP, e encerrando 4 fábricas em fevereiro de 2017.
Novos produtos: criação de equipes dedicadas para comercializar soluções construtivas, caixas d’água de polietileno e metais para cozinhas e banheiros. Foi reestruturada a área de inovação para a pesquisa e desenvolvimento de novos produtos no segmento de materiais de construção.
Louças sanitárias: redirecionada para mercados com melhor rentabilidade, em estados onde das fábricas de fibrocimento em função da sinergia logística. Produtos de médio luxo para melhorar mix. Operações spots para exportação e O&M como segmentos complementares para diluição de custo fixo.
Substituição do amianto nas telhas de fibrocimento: por fibras sintéticas. Mudança concluída em dezembro de 2018. Redirecionamento do portfólio de produtos e negócios, em busca de uma melhor adequação às demandas do mercado e de crescimento sustentável.
Ainda, nos anos seguintes, a empresa continuou a busca por melhorias de eficiência e refinamento estratégico, ações entre as quais menciono:
Abandono de negócios em que a companhia não era competitiva, como louças e metais sanitários, ou que não geravam resultados, como caixas d’água.
Foco no negócio de cobertura, com telhas de fibrocimento e telhas de concreto. Negócios operacionalmente rentáveis.
Manutenção da cultura de redução de custos fixos, enxugando a estrutura corporativa.
Captura dos impactos da pandemia: o setor construção civil foi beneficiado pelo auxílio emergencial do governo federal, com taxa de juros reduzida. As lojas de construção foram consideradas essenciais e permaneceram abertas, o que fez crescer a participação da construção civil no orçamento do consumidor.
Segundo a empresa, a estratégia para os próximos anos permanece com foco no crescimento em mercados em que a empresa é líder, e em novos produtos:
Mercado – a empresa acredita na mudança no comportamento das pessoas e tudo o que se refere ao lar e ao bem-estar será considerado importante. Grande parte da recuperação da receita líquida da Eternit foi consequência da demanda aquecida no segmento de fibrocimento.
Grande aposta – telhas fotovoltaicas. Fibrocimento é produto voltado para o segmento popular, e as telhas de concreto são as mais caras. Os consumidores de classe média e média alta podem instalar um painel solar fotovoltaico, que não é acessível para baixa renda. Para isso, empresa eliminou vários componentes desses painéis, sendo que o produto Eternit é mais simples, com a fotocélula aplicada diretamente sobre a telha, instalada da maneira comum, sem necessidade de reforçar a estrutura do telhado. Esse projeto é promissor, mas ainda se encontra em fase de testes de durabilidade.
Mercados alvo – residências, comércios, instalações da agroindústria, como galpões para criação avícola e confinamento de gado.
Precificação – entre 10% e 15% mais barata que a instalação de um sistema com painel solar fotovoltaico tradicional. A telha de fibrocimento voltaica apresenta economia estimada de 20%.
Explorar a vantagem da telha fotovoltaica – não carrega o custo de instalação do painel. Os clientes que possuem telhas comuns apenas precisarão substitui-las por fotovoltaicas. O sistema é modular: o cliente não precisa comprar todas as telhas de uma vez, pode fazer uma cobertura parcial.
Atualmente, a Eternit executa ampliações das unidades do Rio de Janeiro (conclusão em 1T22) e Goiânia (conclusão em 2T22), e outros projetos de modernização das suas unidades de fibrocimento (adicional produtivo de 7 mil toneladas/mês, aproximadamente 10% da capacidade atual).
No 4T21, a Companhia continuou realizando vendas das telhas fotovoltaicas de concreto, e em dezembro/21, a telha fotovoltaica de fibrocimento teve seu registro homologado pelo Inmetro, cumprindo o processo de registro deste novo produto.
Em novembro/21, anunciou implantação de nova fábrica de telhas de fibrocimento no Ceará, (investimento de R$165 milhões), com início de operação previsto para 2023. Ainda, foi realizada captação de R$ 110 milhões através de aumento de capital, para aquisição da Confibra, realizada em janeiro/22, adicionando 20% na capacidade de produção de telhas de fibrocimento do Grupo Eternit.
Eu percebo na Eternit alguns riscos, sendo o principal o dilema do Amianto, ainda não resolvido. O fato de a empresa ainda explorar o amianto, piora a imagem da mesma junto aos consumidores, ainda mais com investidores buscando investimentos ESG. O custo do amianto é mais baixo, o material aguenta altas temperaturas e melhor qualidade isolante, mas as fibras, apesar da utilização de EPIs, podem de causar câncer de pulmão. Segundo a OMS, pelo menos 107 mil pessoas morrem por ano em todo o mundo por doenças causada pelo amianto.
A empresa segue a legislação. Em julho/2019, uma lei do governador de Goiás, autorizou a extração e a exportação do amianto crisotila no estado. A lei estadual contrariou a decisão do STF que, em 2017, proibiu a produção no país. A decisão da gestão da Eternit foi seguir com a operação da mineradora, mas atendendo apenas o mercado externo, com seu nível de produção reduzido a um terço do original. Não vou entrar aqui no mérito do certo ou errado.
Demais riscos incluem alguma queda no preço da ação desde dezembro 2021 (pode ser algum ajuste dada a elevada alta dos meses passados), mas não identifico risco vigente/saldo devedor no mercado, ou seja, aparentemente tem pouco risco de inadimplemento, vindo cumprindo suas obrigações da RJ, com condições de quitação da mesma. Ainda, possui elevado volume de ações trabalhistas, R$72mm, principalmente pela exposição dos seus colaboradores ao amianto, o qual não faz mais parte dos seus produtos de manipulação direta.
Como oportunidades, vejo um grupo tradicional, atuante há mais de 82 anos no mercado, com vasto reconhecimento e principal player no segmento, operando com liquidez corrente, desde de 2020 apresentando margens operacionais saudáveis, com geração positiva de caixa, (incrementando receitas, com redução de custos, melhorando as suas margens, principal responsável para o excedente de caixa), amortizações do passivo bancário (RJ), investimentos em expansão/ modernização, bem como aquisição de novas empresas e ampliações industriais.
Interessante caso o da Eternit. Uma empresa que perdeu direito de uso do seu principal insumo, realizou uma recuperação judicial ordenada, reformulou sua linha de produtos, continuou mantendo seu market-share, e agora volta a crescer (duas modernizações de fábricas para serem entregues em 2022 que tendem a adicionar 10% de aumento da capacidade atual e uma aquisição feita que aumenta em 20% a capacidade de telhas de fibrocimento), talvez mais saudável e, provavelmente, socialmente responsável, com a ressalva da brecha legal para exportação do minério amianto.
Fonte: Google.
“A imagem da Eternit está mudando”, diz Barbosa. “Se antes a empresa era associada a uma matéria-prima questionável, agora se volta à energia renovável”. Vamos aguardar os próximos capítulos.
A presente análise foi realizada com informações disponíveis publicamente, não sendo recomendação de aquisição ou investimento. Avaliações bem mais aprofundadas se fazem necessárias afim de tomadas de decisão. *Estevão Secatto Rocha é professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE), reestruturador de empresas pela KPMG e IVIX , diretor da G4S (LSE) e associado no private equity Artesia. Assessorou mais de uma centena de empresas